terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

História da Farmácia | Os “remédios de segredo”


Nos séculos XVII e XVIII, deu-se o aparecimento da farmácia química em Portugal. Químicos e destiladores estrangeiros que se estabeleceram no país, trouxeram consigo a produção de medicamentos preparados por arte química. No início de seiscentos alguns destes medicamentos já eram utilizados, mas houve alguma resistência à difusão destas técnicas, pois ainda havia uma predominância das doutrinas da farmácia galénica, baseada numa terapêutica de origem natural e em métodos tradicionais como purgas ou sangrias.
Foi só na primeira metade do século XVIII, que os medicamentos químicos se tornaram mais populares na forma de remédios secretos, tendo bastante aceitação por parte da população. Eram feitos principalmente por químicos, médicos, cirurgiões e até alguns boticários. Porém, os boticários que se dedicavam à sua produção eram uma minoria, pois a maior parte das boticas não tinha instalações e equipamentos necessários para a manipulação química, e continuavam a utilizar sobretudo as técnicas tradicionais.
Com o desenvolvimento da química farmacêutica começaram a comercializar-se cada vez mais substâncias químicas e até preparados galénicos. A "Teriaga Magna", a "Água da Rainha da Hungria", o "Óleo de Ouro", as "Pedras Cordiais" e o "Xarope Violado Roxo" são alguns nomes pelos quais ficaram conhecidos esses preparados.
A “Água de Inglaterra foi um dos remédios de segredo mais populares durante o século XVIII. Eram conhecidos por este nome vários preparados farmacêuticos, produzidos por diferentes fabricantes desde finais do século XVII até inícios do século XIX, que apresentam em comum serem vinhos de quina. Eram utilizados para o tratamento do paludismo, doença com bastante incidência em todo o território português, e começaram por ser importados de Inglaterra. Mais tarde, Castro Sarmento conseguiu organizar uma rede de distribuição da “Água de Inglaterra em Portugal e com o tempo, foram surgindo produtores locais que satisfaziam o aumento da sua procura.
Foi neste contexto de expansão dos rémedios de segredo que surgiu a publicidade a medicamentos. Pela primeira vez eram publicitados remédios considerados milagrosos que prometiam curar diferentes maleitas. Os anúncios eram publicados no periódico Gazeta de Lisboa e em cartazes impressos e fixados nas ruas. Eram medicamentos que se destinavam sobretudo ao consumo por auto-medicação.
Com a difusão das ideias iluministas, no reinado de D. José I e governo do Marquês de Pombal, assistiu-se à rejeição da prática da farmácia galénica e à condenação da produção de medicamentos de segredo.
Um grande desenvolvimento neste sentido foi a criação do curso de boticário na reforma Pombalina da Universidade de Coimbra de 1772. Era um curso integrado na Faculdade de Medicina, com a duração de quatro anos, com dois anos de aprendizagem de química no Laboratório Químico e dois anos de aprendizagem de arte farmacêutica no Dispensatório Farmacêutico.


Anúncio a um remédio secreto na Gazeta de Lisboa de 9 de junho de 1718
Consultada na Hemeroteca Digital



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Uma breve história da farmácia em Portugal (séculos XIII – XIX)

Indissociável da história da medicina, a história da farmácia tem vários milénios, que remonta à origem da humanidade.
Em território português, certamente que a presença de vários povos, sobretudo dos árabes, deixou um vasto legado de conhecimentos na área da saúde, produção de drogas medicinais e comércio de especiarias, que terá chegado até à Idade Média.
Na Idade medieval, a utilização de especiarias, para fins terapêuticos era bastante comum, fazendo parte da composição de vários medicamentos e os boticários eram os especialistas na sua produção. Os primeiros boticários em Portugal terão surgido no século XIII, mas antes já existiam os denominados especieiros, vendedores ambulantes de especiarias e drogas medicinais. Boticários e especieiros coexistiram ainda durante um período incerto de tempo, mas a evolução da denominação terá a ver com o aparecimento de um estabelecimento fixo para a venda de medicamentos, a botica.
Botica do Real Convento de Tomar
A existência de mulheres boticárias foi uma particularidade portuguesa e um fenómeno singular na Península Ibérica. A primeira referência a uma boticária data de 1326, e mais tarde, nos séculos XV e XVI surgem outras referências de mulheres boticárias ao serviço de senhoras da alta nobreza. Também existiam boticas em conventos e mosteiros, que muito contribuíram para o desenvolvimento da prática farmacêutica, pois não se limitavam a fornecer somente as próprias ordens, vendendo medicamentos também ao público.
Em 1338, o rei D. Afonso IV promulgou um documento onde encontramos a primeira referência à profissão,  um diploma que obrigou todos os médicos, cirurgiões e boticários da cidade de Lisboa, a serem examinados pelos médicos do rei. Em 1449, D. Afonso V concedeu uma carta de privilégios aos boticários e em 1461, regulamentou a separação entre as profissões médica e farmacêutica. Este diploma instituiu que a venda de medicamentos seria exclusiva dos boticários. A única exceção foi concedida aos teriagueiros, caso fossem portadores de uma certidão médica atestando a boa qualidade da teriaga, um antigo antídoto para envenenamentos.
Regimento do Físico-mor do Reino (1521)
A expansão marítima portuguesa, iniciada no século XV, teve uma grande repercussão no desenvolvimento da ciência farmacêutica, com a descoberta de novas espécies vegetais, minerais e animais, que proporcionaram a vinda, para a Europa, de drogas desconhecidas de grande interesse terapêutico e comercial.
Foi durante o reinado de D. Manuel I, que se realizou uma grande reorganização da prática sanitária e farmacêutica em Portugal através do Regimento do Físico-mor do reino de 1521. Este diploma determinou a obrigatoriedade de um exame feito pelo físico-mor para todos aqueles que pretendessem exercer a profissão de boticário. Viria a ser o documento legal que regulamentava toda a atividade da  profissão farmacêutica até 1836. Todas questões relacionadas ao exercício da profissão farmacêutica eram reguladas pelo físico-mor do reino, desde o estabelecimento de preços dos medicamentos às inspeções feitas nas boticas. Para este cargo era escolhido, pelo rei, um dos médicos da sua casa.
A aprendizagem dos saberes farmacêuticos era realizada nas boticas e depois de quatro ou mais anos de prática poderiam realizar o exame de acesso à profissão. O nível técnico da produção de medicamentos não exigia uma formação em instituições de ensino próprias e a aprendizagem com um profissional estabelecido, o mestre, era a que correspondia a um ofício mecânico.
Os boticários portugueses dos séculos XVI a XVIII apresentam uma grande divisão entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Muitos médicos e boticários eram descendentes dos judeus convertidos em cristãos-novos no reinado de D. Manuel I, sendo alvos preferenciais da intolerância religiosa. Este ódio aos cristãos-novos, era alimentado pela própria Igreja, que aliado ao grande peso da religião nas crenças terapêuticas, levava a que parte da população desconfiasse da ação de medicamentos dispensados por quem eles consideravam falsos cristãos.
Nos séculos XVII e XVIII, deu-se o aparecimento da farmácia química. No início de seiscentos alguns medicamentos químicos já eram utilizados em Portugal, mas a sua utilização só foi aceite de forma mais pacífica em finais do século. Esta aceitação reflectiu-se no aparecimento de literatura farmacêutica, até então praticamente inexistente. Nos finais do século XVII, também se  assistiu a uma grande expansão do número de entradas na profissão farmacêutica.
Apesar disso, houve alguma resistência à difusão das técnicas químicas. A maior parte das boticas não tinha instalações e equipamentos necessários para a manipulação química, e também não havia investimento nesse sentido. As dificuldades da farmácia portuguesa em acompanhar as transformações técnico-científicas da época, estavam relacionadas sobretudo com as características sócio-económicas dos boticários, considerada então uma profissão de ofício mecânico.
Na primeira metade do século XVIII, os medicamentos químicos foram popularizados na forma de remédios secretos, feitos principalmente por químicos, médicos e cirurgiões e tiveram muita aceitação em Portugal. Com os remédios de segredo nasceu a publicidade a medicamentos, em anúncios publicados no periódico Gazeta de Lisboa e em cartazes impressos fixados nas ruas. Estes medicamentos destinavam-se principalmente ao consumo por auto-medicação.
Em 1772, através da reforma pombalina na Universidade de Coimbra foi instituído o Dispensatório Farmacêutico do novo Hospital Escolar, para o ensino de farmácia a boticários e estudantes de medicina, e para produção de medicamentos.
Apesar de se publicar várias farmacopeias ao longo do século XVIII, só em 1794, durante o reinado de D. Maria I, é que Portugal teve a primeira farmacopeia oficial, a Pharmacopeia Geral.
Botica (1823)
Pintura de Jean-Baptiste Debret
Foi finalmente no século XIX, que houve um maior desenvolvimento da farmácia em Portugal com criação e consolidação do ensino superior e com o fortalecimento do associativismo entre a profissão. O associativismo farmacêutico surgiu de um movimento geral contra o cargo de físico-mor, que era quem ainda dominava toda a regulamentação da atividade farmacêutica. Em 1834, foi apresentada pelos farmacêuticos uma petição e como consequência foram suspensas as funções do físico-mor. Em 1835, na botica do Hospital de S. José, foi criada a primeira associação especificamente farmacêutica, a Sociedade Farmacêutica Lusitana.
Em 1836, nasceu o ensino superior farmacêutico, com a criação das Escolas de Farmácia anexas à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e às Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto. Mas também foi mantido o antigo acesso à profissão, através de um exame final realizado na Faculdade e nas Escolas Médico-Cirúrgicas após oito anos de prática numa farmácia, havendo assim duas categorias de farmacêuticos, de 1.ª e de 2.ª classe. Esta distinção vigoraria até 1902, ano em que se determinou por lei a obrigação de todos os candidatos a farmacêuticos, frequentarem o Curso de Farmácia.
Foi na última década do século XIX, que a indústria farmacêutica iniciou o seu desenvolvimento em Portugal. A primeira indústria farmacêutica de grande dimensão foi Companhia Portuguesa Higiene, fundada em 1891. A partir de então, assistiu-se a uma a proliferação de fabricantes de especialidades farmacêuticas.
Foi também no século XIX, que surgiu a primeira grande obra de investigação sobre história da farmácia em Portugal, da autoria de Pedro José da Silva (1834-1878), a História da Pharmacia Portugueza desde os primeiros séculos da monarchia até ao presente, uma obra de notável dimensão publicada entre 1866 e 1868.
 
Farmácia do século XIX
Museu da Farmácia de Lisboa

Bibliografia:
Museu da farmácia URL https://www.museudafarmacia.pt
A Botica do Real Convento de Thomar URL http://www.boticaconvento.ipt.pt
Pita, João Rui, História da Farmácia. Coimbra: Minerva Coimbra, 2007
Cabral, Célia e Pita, João Rui, Sinopse da História da Farmácia. Cronologia. Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, 2015