Indissociável da história da
medicina, a história da farmácia tem vários milénios, que
remonta à origem da humanidade.
Em território português, certamente
que a presença de vários povos, sobretudo dos árabes,
deixou um vasto legado de conhecimentos na área da
saúde, produção de drogas medicinais e comércio de especiarias, que terá chegado
até à Idade
Média.
Na Idade medieval, a utilização de especiarias, para fins terapêuticos era bastante comum, fazendo
parte da composição de vários medicamentos e os boticários eram os especialistas na sua produção. Os primeiros boticários em Portugal terão surgido no século XIII, mas antes já existiam
os denominados especieiros, vendedores ambulantes de especiarias e drogas
medicinais. Boticários e especieiros
coexistiram ainda durante um período incerto
de tempo, mas a evolução da
denominação terá a ver com o aparecimento de um estabelecimento fixo para
a venda de medicamentos, a botica.
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Botica do Real Convento de Tomar |
A existência de mulheres boticárias
foi uma particularidade portuguesa e um fenómeno
singular na Península Ibérica. A primeira referência a uma boticária data de 1326, e mais tarde, nos séculos XV e XVI surgem outras referências de mulheres boticárias ao serviço de senhoras da alta nobreza. Também existiam boticas em conventos e mosteiros, que muito
contribuíram para o desenvolvimento da prática
farmacêutica, pois não se limitavam a fornecer somente as
próprias ordens, vendendo medicamentos também ao público.
Em 1338, o rei D. Afonso IV
promulgou um documento onde encontramos a primeira referência à
profissão, um diploma que obrigou todos os médicos, cirurgiões e boticários da
cidade de Lisboa, a serem examinados pelos médicos
do rei. Em 1449, D. Afonso V concedeu uma carta de privilégios aos boticários e em 1461, regulamentou a separação entre as profissões médica e
farmacêutica. Este diploma instituiu
que a venda de medicamentos seria exclusiva dos boticários. A única
exceção foi concedida aos
teriagueiros, caso fossem portadores de uma certidão médica
atestando a boa qualidade da teriaga, um antigo antídoto para envenenamentos.
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Regimento do Físico-mor do Reino (1521) |
A expansão marítima
portuguesa, iniciada no século XV,
teve uma grande repercussão no
desenvolvimento da ciência
farmacêutica, com a descoberta de
novas espécies vegetais, minerais e
animais, que proporcionaram a vinda, para a Europa, de drogas desconhecidas de
grande interesse terapêutico e
comercial.
Foi durante o reinado de D. Manuel
I, que se realizou uma grande reorganização da
prática sanitária e farmacêutica
em Portugal através do Regimento do Físico-mor do reino de 1521. Este
diploma determinou a obrigatoriedade de um exame feito pelo físico-mor para todos aqueles que
pretendessem exercer a profissão de
boticário. Viria a ser o documento
legal que regulamentava toda a atividade da profissão
farmacêutica até 1836. Todas questões relacionadas ao exercício da profissão farmacêutica eram
reguladas pelo físico-mor do reino, desde o
estabelecimento de preços dos
medicamentos às inspeções feitas nas boticas. Para este
cargo era escolhido, pelo rei, um dos médicos
da sua casa.
A aprendizagem dos saberes farmacêuticos era realizada nas boticas e depois
de quatro ou mais anos de prática
poderiam realizar o exame de acesso à
profissão. O nível técnico
da produção de medicamentos não exigia uma formação em instituições de ensino próprias e
a aprendizagem com um profissional estabelecido, o mestre, era a que
correspondia a um ofício mecânico.
Os boticários portugueses dos séculos
XVI a XVIII apresentam uma grande divisão entre
cristãos-novos e cristãos-velhos. Muitos médicos e boticários eram descendentes dos judeus convertidos em cristãos-novos no reinado de D. Manuel I, sendo
alvos preferenciais da intolerância religiosa.
Este ódio aos cristãos-novos, era alimentado pela própria Igreja, que aliado ao grande
peso da religião nas crenças terapêuticas, levava a que parte da população desconfiasse da ação de medicamentos dispensados por
quem eles consideravam falsos cristãos.
Nos séculos XVII e XVIII, deu-se o aparecimento da farmácia química.
No início de seiscentos alguns
medicamentos químicos já eram utilizados em Portugal, mas a sua utilização só foi
aceite de forma mais pacífica em
finais do século. Esta aceitação reflectiu-se no aparecimento de literatura
farmacêutica, até então
praticamente inexistente. Nos finais do século
XVII, também se assistiu a uma grande expansão do número de
entradas na profissão farmacêutica.
Apesar disso, houve alguma resistência à difusão das técnicas
químicas. A maior parte das boticas não tinha instalações e equipamentos necessários para a manipulação química, e
também não havia investimento nesse sentido. As dificuldades da farmácia portuguesa em acompanhar as
transformações técnico-científicas da
época, estavam relacionadas sobretudo
com as características sócio-económicas dos boticários,
considerada então uma profissão de ofício mecânico.
Na primeira metade do século XVIII, os medicamentos químicos foram popularizados na forma de
remédios secretos, feitos principalmente
por químicos, médicos e cirurgiões e tiveram muita aceitação em Portugal. Com os remédios de segredo nasceu a publicidade
a medicamentos, em anúncios
publicados no periódico Gazeta de Lisboa e em cartazes impressos fixados nas ruas. Estes
medicamentos destinavam-se principalmente ao consumo por auto-medicação.
Em 1772, através da reforma pombalina na
Universidade de Coimbra foi instituído o
Dispensatório Farmacêutico do novo Hospital Escolar, para
o ensino de farmácia a boticários e estudantes de medicina, e para
produção de medicamentos.
Apesar de se publicar várias farmacopeias ao longo do século XVIII, só em 1794, durante o reinado de D. Maria I, é que Portugal teve a primeira
farmacopeia oficial, a Pharmacopeia Geral.
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Botica (1823) Pintura de Jean-Baptiste Debret |
Foi finalmente no século XIX, que houve um maior
desenvolvimento da farmácia em
Portugal com criação e consolidação do ensino superior e com o
fortalecimento do associativismo entre a profissão. O
associativismo farmacêutico
surgiu de um movimento geral contra o cargo de físico-mor,
que era quem ainda dominava toda a regulamentação da
atividade farmacêutica. Em 1834, foi
apresentada pelos farmacêuticos
uma petição e como consequência foram suspensas as funções do físico-mor. Em 1835, na botica do Hospital de S. José, foi criada a primeira associação especificamente farmacêutica, a Sociedade Farmacêutica Lusitana.
Em 1836, nasceu o ensino superior
farmacêutico, com a criação das Escolas de Farmácia anexas à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e às Escolas Médico-Cirúrgicas
de Lisboa e Porto. Mas também foi
mantido o antigo acesso à
profissão, através de um exame final realizado na
Faculdade e nas Escolas Médico-Cirúrgicas após oito anos de prática
numa farmácia, havendo assim duas
categorias de farmacêuticos,
de 1.ª e de 2.ª classe. Esta distinção vigoraria até 1902, ano em que se determinou por
lei a obrigação de todos os candidatos a
farmacêuticos, frequentarem o Curso
de Farmácia.
Foi na última década do
século XIX, que a indústria farmacêutica iniciou o seu desenvolvimento em Portugal. A
primeira indústria farmacêutica de grande dimensão foi Companhia Portuguesa Higiene, fundada em 1891. A partir de então, assistiu-se a uma a proliferação de fabricantes de especialidades
farmacêuticas.
Foi também no século XIX, que surgiu a primeira grande obra de investigação sobre história da farmácia em Portugal, da autoria de Pedro José da Silva (1834-1878), a História da Pharmacia Portugueza desde os primeiros séculos da monarchia até ao presente, uma obra de notável dimensão publicada entre 1866 e 1868.
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Farmácia do século XIX
Museu da Farmácia de Lisboa |
Bibliografia:
Pita, João Rui, História da Farmácia. Coimbra: Minerva Coimbra,
2007
Cabral, Célia e Pita, João Rui, Sinopse da
História da
Farmácia.
Cronologia. Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, 2015